Por Roberto Schultz
A Nova Lei de Licitações (14.133/2021); como todos já estamos carecas de saber, entrou em vigor no dia 01 de abril de 2021.
O “1º de abril” não é um bom dia para uma lei entrar em vigor, ainda mais se tratando de licitações públicas e contratos administrativos. Não por acaso, o chamado “golpe de 1964” foi deflagrado, de verdade, no dia 1º de abril daquele ano em que eu nasci (nasci em novembro), mas dizem que os militares envolvidos na época “retroagiram oficialmente” a data para o dia 31 de março, a fim de que o "golpe" não ficasse caracterizado como um ato a ser “homenageado” no famoso “Dia dos Bobos”. Não sei se é verdade e não encontrei nada a respeito. Mas é o que diz a lenda.
Voltando à Nova Lei de Licitações, ela é muito nova e tem um texto muito grande para que valha a pena, agora, comentar toda ela. Seria meio que chover no molhado.
Primeiro; e como também sabemos, porque embora ela esteja em vigor desde a sua publicação, ainda seguirá sendo apenas “opcional” até 01 de abril de 2023, quando revogará definitivamente as Leis 8.666/93; 10.520/02 e parte da Lei 12.462/11.
Segundo, porque é melhor comentá-la por partes na medida em que já haja algum movimento doutrinário e da jurisprudência (certamente há pouquíssimos julgados sobre ela) sobre a sua aplicação mas, sobretudo, quando haja algum movimento prático a respeito de algum dos seus pontos. E não apenas um blá-blá-blá teórico para encher linguiça.
Todas as leis – e a Lei 14.133/21 não é diferente – costumam conter no seu texto um tanto de “situações teóricas” e outro tanto igual de situações que efetivamente ocorrem, na prática. Veja-se o exemplo do Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados. Por enquanto, elas são muita teoria... E o que nos interessa é pontualmente essa prática e não ficar discorrendo sobre o Direito Alemão ou outros.
No caso da Nova Lei de Licitações, um dos pontos dela que já é aplicável é sobre a DILIGÊNCIA nas licitações. Porque é uma questão bem prática e que ocorre todos os dias, não ficando apenas no terreno das ideias.
Já andei lendo alguns artigos jurídicos sobre o dever de diligência da Administração que também é tratado como sendo um dever de diligência daquela nova figura, criada pela Lei 14.133/2021, que é o agente de contratação. Um dia diremos “no meu tempo esse agente de contratação se chamava pregoeiro ou presidente da comissão de licitações...”.
Pois bem.
Esses artigos que falam sobre o dever de diligência levam o assunto mais para o campo doutrinário da due dilligence (“diligência prévia”, em tradução livre), que é aquela diligência que deve ser realizada pela Administração em homenagem a uma boa contratação, normalmente atrelada à compliance (para usar outro termo empresarial – e pretensamente jurídico – da moda e do sistema jurídico estrangeiro, como sempre).
Levando para esse lado da due dilligence e da compliance, a diligência se enquadraria nos artigos 8º, 11, 18 e 169 da Lei 14.133/2021, entre outros aplicáveis.
O Art. 8º estabelece a figura que já mencionei antes, do agente de contratação. Diz que esse agente deve contar com o apoio jurídico e dos órgãos de controle interno para o desempenho das suas funções.
O art. 11 fala sobre a governança das contratações, a implantação de processos e estruturas – inclusive de gestão de riscos - para que haja eficiência e eficácia nas licitações e nos contratos.
Por sua vez, o art. 18 fala na fase preparatória da licitação e novamente a análise de riscos.
E, finalmente, o art. 169 exige o controle preventivo nas contratações públicas, de modo a que se “promovam relações íntegras e confiáveis, com segurança jurídica para todos os envolvidos, e que produzam o resultado mais vantajoso para a Administração, com eficiência, eficácia e efetividade nas contratações públicas”.
Quer dizer, de um modo geral até agora, e na doutrina que encontramos, se enfoca bastante esse como sendo um dever de diligência da Administração na preparação e na condução das licitações e contratos administrativos. E tudo isso está corretíssimo e não teríamos a petulância de discordar. Especialmente porque essa posição já está de certa forma implícita e também consagrada nos princípios da legalidade, da moralidade, da vinculação ao edital e também no princípio da eficiência.
Beleza. Mas não é bem sobre isso que eu quero falar.
Nós, que somos do ramo do Direito, sabemos – e até quem não é sabe disso – que a todo dever corresponde um direito e vice-versa.
É aqui que chegamos ao ponto.
Ocorre que ao dever de diligência da Administração também corresponde um direito de diligência do administrado, ou do particular.
Se isso na Lei 8.666/93 vinha restrito ao § 3º do art. 43, agora, na Lei 14.133/2021, o negócio é mais amplo e mais específico, melhor detalhado.
Porque não foram poucas as vezes em que; nestes cerca de 25 anos atuando em licitações, nos deparamos com a absoluta necessidade de que o órgão ou a estatal realizasse uma diligência para esclarecer a proposta ou a documentação do nosso cliente; e até mesmo a documentação e a proposta com falhas dos concorrentes, e não conseguimos que isso fosse feito. O que resultou numa classificação ou desclassificação indevidas, o mesmo se dando em relação à habilitação/inabilitação. E, claro, uma contratação "meia-boca" para a Administração.
Fica-se, pois, entregue à subjetividade do “agente de contratação” (atual pregoeiro ou presidente da comissão de licitações) ou da área técnica competente, que decidem livremente pela necessidade ou não da realização dessa diligência e, às vezes, isso implica não no dever desse agente, mas num direito do licitante.
Não que hoje, com a Nova Lei, esse poder discricionário que é concedido a esses agentes não continue lhes dando essa prerrogativa de decidir livremente. Não é isso. Eles ainda têm essa prerrogativa. Mas pelo menos agora a Lei 14.133/2021 especifica melhor o que pode ser aceito como tal (diligência) e o que implica na juntada de um novo documento e não no mero esclarecimento de algo que já está no processo.
Boa parte dessa Nova Lei de Licitações se parece, na verdade, com uma “compilação da jurisprudência” formada ao longo dos vinte e oito anos de vigência e julgamentos da Lei 8.666/93. E parece que em relação a essa questão da diligência isso também acontece.
Quer dizer, o que consta da Lei 14.133/2021 sobre a diligência parece ter decorrido diretamente do que a jurisprudência julgou sobre isso no decorrer desses anos em relação à Lei 8.666/93.
Na esfera da Tecnologia da Informação e da Comunicação (TIC), por exemplo, é comum que a não realização de diligência (contra um licitante ou a favor e outro) sirva para um resultado injusto e completamente desvinculado das especificações técnicas do edital e do seu termo de referência. Trabalhamos muito com o ramo de TIC e vemos isso a todo momento.
Se o pregão eletrônico para o fornecimento de um computador exige que o processador desse equipamento (desktop ou notebook, não importa) atinja uma pontuação mínima de desempenho (de acordo com a standard performance evaluation corporation, ou SPEC) e um dos licitantes oferta um determinado processador que, sob essa avaliação, não atinja esse desempenho SPEC mínimo, é dever da Administração promover a diligência que irá verificar o efetivo atingimento dessa pontuação pelo processador ofertado.
Mas é também um direito do licitante concorrente que essa diligência seja realizada!
Por que se eu; o licitante joãozinho-do-passo-certo, participei desse pregão levantando todos os custos (e altos) para conseguir participar desse pregão, e fiz um orçamento detalhado e específico para atender a todos os itens do termo de referência, por que catso a Administração há de tolerar; e sem sequer diligenciar, que o meu concorrente se lixou para a especificação técnica e ofertou qualquer coisa? Só por causa do precinho camarada que ele ofertou? Não, né? Se eu soubesse que “vale tudo” teria, também, ofertado um preço bem menor. Não é justo, não é isonômico.
E eu aqui me refiro à área de Tecnologia, mas isso ocorre em todas as áreas. Da Construção Civil à Alimentação. Do Material Escolar aos Equipamentos Hospitalares. Dos veículos aos Serviços Especializados. Em todas as áreas, pois, já que atuamos atendendo a empresas de vários segmentos.
É quase um IMPERATIVO à Administração Pública; diante de tantos fatos e circunstâncias ultimamente noticiados na mídia e envolvendo contratos administrativos ("alô, pandemia e equipamentos para a Saúde!"), que a contratação seja cercada de todas as cautelas e garantias que a Lei faculta, permite e exige para que o interesse público esteja resguardado e não seja, após a contratação, maculado.
Como um dever da Administração, claro. Mas também como um direito do licitante.
O art. 42 § 2º da Lei 14.133/21 menciona claramente a exigência de amostra do produto como condição para firmar o contrato. O art. 59 § 2º diz mais ou menos a mesma coisa.
E o art. 64, caput, mais direto ao assunto, já considera a possibilidade de substituir ou acrescentar documentos, “em sede de diligência” para (grifamos):
I - complementação de informações acerca dos documentos já apresentados pelos licitantes e desde que necessária para apurar fatos existentes à época da abertura do certame;
II - atualização de documentos cuja validade tenha expirado após a data de recebimento das propostas.
§ 1º Na análise dos documentos de habilitação, a comissão de licitação poderá sanar erros ou falhas que não alterem a substância dos documentos e sua validade jurídica, mediante despacho fundamentado registrado e acessível a todos, atribuindo-lhes eficácia para fins de habilitação e classificação.
§ 2º Quando a fase de habilitação anteceder a de julgamento e já tiver sido encerrada, não caberá exclusão de licitante por motivo relacionado à habilitação, salvo em razão de fatos supervenientes ou só conhecidos após o julgamento.
Se vê que no art. 64 da Lei 14.133/2021 é concedida a flexibilização ao agente de contratação e também é imposta uma certa responsabilidade ao mesmo para que examine direitinho a documentação de habilitação a fim de que, depois, não volte atrás no julgamento quando a respectiva fase já tiver sido ultrapassada na licitação.
A diligência é um direito que atende à Administração, especialmente se essa não focar os seus esforços exclusivamente no menor preço, mas também na melhor técnica que ela própria elegeu e exigiu no edital e no termo de referência.
Aceitar um produto ou serviço “de segunda” (categoria), depois de ter exigido no edital que eles fossem “de primeira”, não apenas incorre na já repetitiva desvinculação do edital, quanto em incômoda ilegalidade pela Administração e pelo agente de contratação.
É o mesmo que “criar regra nova” depois do edital já publicado e da licitação já estar na sua fase de conclusão.
Está na hora da Administração “fazer a lição de casa” e saber exatamente do que precisa, envolvendo a sua área técnica e o mercado. Exigindo somente o que realmente precisa e não “inventando moda” ou fazendo editais na modalidade “recorte e cole”.
E, claro, se essa Administração estiver convicta daquilo que necessita contratar e recebido a devida e completa comprovação do atendimento disso apresentada pelos licitantes, deverá, se for o caso, conceder o direito de diligência para que o edital, a proposta técnica e os documentos de habilitação dos licitantes “casem” entre si. E sejam felizes por todo o prazo contratual.

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Excelente texto, bem humorado, leve e com adequada profundidade. Foi bastante útil. Parabéns ao autor!João Luiz Neves - Assessoria em Licitações