Por Roberto Schultz
Só se tem conhecimento, até agora, de um único contrato público sobre o qual se cogita requerer o seu reequilíbrio econômico-financeiro, por decorrência dos graves e inegáveis prejuízos causados pela enchente no Rio Grande do Sul.
E o que se sabe disso, vem pela Imprensa, como mostra o recorte abaixo, da matéria publicada hoje (27 de maio de 2024) no Jornal ZERO HORA, de Porto Alegre, mas replicado em inúmeros outros sites e veículos informativos pelo Brasil afora.
Esse Contrato é o da CONCESSÃO PARA AMPLIAÇÃO, MANUTENÇÃO E EXPLORAÇÃO DO AEROPORTO DE PORTO ALEGRE - SALGADO FILHO, celebrado pela Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) com a Fraport Brasil S.A. Aeroporto de Porto Alegre (FRAPORT), sob a interveniência da Empresa Brasileira de Infraestrutura Aeroportuária (INFRAERO).
Repito: o que se sabe sobre esse caso concreto é apenas o que vem da Imprensa.
E a matéria diz que a ANAC já se manifestou dizendo que "está analisando a solicitação. Segundo a Anac, dimensão das perdas no aeroporto será possível somente quando a água baixar".
Desse modo, o Contrato entre a ANAC e a alemã FRAPORT é utilizado e mencionado aqui como mera referência de uma situação jurídica que se apresenta num momento francamente atípico. Ainda que seja um contrato público e; por isso e teoricamente, ele seja do interesse de TODOS NÓS cidadãos gaúchos e brasileiros, as referências, fundamentações jurídicas e o teor dos FATOS efetivamente inerentes ao pedido que está sendo feito pela FRAPORT à ANAC nos são desconhecidos.
Então, tampouco estamos entrando no mérito do pedido feito pela Concessionária, pedido esse que também desconhecemos. Este aqui será um comentário em tese.
Mas - dada a experiência e esses mais de 28 anos "de janela" que nós já temos observando licitações públicas - dá para termos uma ideia das discussões possíveis nesse caso.
O primeiro impulso ao se fazer um pedido de reequilíbrio financeiro de contrato é, num caso assim, requerê-lo com base no costumeiro (mas não muito comum) fundamento legal de que teria ocorrido "caso fortuito ou força maior", desequilibrando a equação financeira do mesmo contrato.
E quando digo que esse fundamento "não é muito comum", quero dizer que não é todo dia que ocorrem um "caso fortuito" ou uma situação de "força maior" no âmbito contratual. Menos ainda uma catástrofe climática como a a tual que, até onde eu saiba, é inédita no Brasil até este ano de 2024.
Esse fundamento legal "sempre existiu" para efeitos de contratos; seja no Código Civil, seja na anterior e revogada Lei de Licitações, a velha 8.666/93 (tão mencionada quanto o nome do autor Hely Lopes Meirelles). Além de existir também em outros dispositivos legais esparsos.
Acontece que na ainda Nova Lei de Licitações; a Lei 14.133/2021, o tema vem previsto no art. 124, que assinalamos:
CAPÍTULO VII
DA ALTERAÇÃO DOS CONTRATOS E DOS PREÇOS
Art. 124. Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:
(...)
II - por acordo entre as partes:
(...)
d) para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe ou em decorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis de consequências incalculáveis, que inviabilizem a execução do contrato tal como pactuado, respeitada, em qualquer caso, a repartição objetiva de risco estabelecida no contrato.
Observe que, de um modo geral, "caso fortuito e força maior" parecem uma dupla sertaneja, pois normalmente - em especial nos pedidos de requilíbrio e/ou de alteração contratual - eles costumam se apresentar sempre juntos, como se tudo fosse "uma coisa só".
E a Lei 14.133/2021 mencionou como hipóteses de ajuste entre as partes a "força maior", pôs uma VÍRGULA, para só depois vir o "caso fortuito", e ainda arrematou com um "fato do príncipe" (não, não é Dom Pedro I; o Príncipe Regente. O "príncipe" aqui é outro). Mas esse "fato do príncipe" não abordaremos agora.
Pois bem, notamos, então, que a Lei de 2021 tratou de apartar a "força maior" do "caso fortuito". Por aquela Lei 14.133/2021, portanto, se percebe que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, como já nos ensina o dito popular.
Pra variar, tem polêmica em torno disso. No Brasil sempre tem. Porque essa diferença entre o "caso fortuito e a força maior" não é uma questão pacífica na doutrina, com vários conceitos para eles; isoladamente em "carreira solo", ou também agrupados na mesma "dupla sertaneja", nesse último caso por aqueles doutrinadores que consideram os dois como sendo sinônimos.
Maria Helena Diniz caracteriza a força maior como sendo um fato da natureza, e por isso diz que o motivo ou a causa dela são conhecidos. Já, e para a mesma autora, o caso fortuito tem origem em causa desconhecida e dá como exemplo "um cabo elétrico aéreo que sem saber o motivo se rompe e cai sobre fios telefônicos causando incêndio explosão de caldeira de usina, provocando morte".
Já Álvaro Villaça Azevedo entende que caso fortuito é o acontecimento provindo da natureza sem que haja interferência da vontade humana e a força maior é a própria atuação do homem manifestada em fato de terceiro ou do credor.
Observaram como Maria Helena Diniz e Álvaro Villaça Azevedo, por exemplo, têm opiniões e conceitos praticamente opostos?
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao analisar casos concretos, não tratou de distinguir doutrinariamente - o que de fato não lhe cabe distinguir - o que sejam "caso fortuito" e "força maior", mas sim em verificar a presença de um ou de ambos em cada lide que lhe foi submetida para julgamento, com as particularidades de cada caso, e sublinhando que a imprevisibilidade estava presente em todos eles.
Eu, de minha modesta parte, entendo que Villaça Azevedo tem mais chance de estar com a razão. Isso porque na minha opinião a definição jurídica de caso fortuito têm raiz no próprio significado da palavra "fortuito", que o dicionário nos ensina que é referente a um "evento que não se pode prever e que não podemos evitar". No caso da enchente aqui do Estado, então, é fato decorrente de força da natureza e sem interferência da vontade humana, de um modo geral imprevisível (mesmo havendo uma suposta "previsão do tempo", pela Metereologia) e inevitável.
A força maior seria - por exemplo - uma guerra, uma revolução.
É a minha opinião, como disse, baseado na experiência e na leitura da doutrina.
Bueno, e, afinal, no caso do contrato entre a FRAPORT e a ANAC, para a concessão do Aeroporto de Porto Alegre? Ainda hoje inundado e inoperante, atualmente substituído pela pista da Base Aérea de Canoas (RS), que no dia de hoje passou a receber e a decolar vôos comerciais?
O Contrato ali - como já dissemos - é de uma CONCESSÃO, que tem particularidades um pouco diferentes de um contrato administrativo de prestação de serviços ou de fornecimento de bens.
Acontece que no caso de concessão, o serviço público é exercido por “conta e risco” do contratado (art. 2º, incisos II, III e IV, da Lei nº 8.987, de 1995; Lei de Concessões e Permissões). O mesmo se aplica aos arrendamentos portuários (art. 1º, § 3º, da Lei nº 12.815, de 2013; Lei de Portos e Instalações Portuárias ).
Porém, isso não significa que o concessionário, permissionário ou o arrendatário de terminais aeroportuários/portuários assumam o risco integral pela prestação do serviço.
Maiores riscos resultam em maiores custos a serem transferidos aos usuários do serviço público, o que impede que as tarifas seja acessíveis.
E o autor Marçal Justen Filho qualifica esse risco de “precificado”, porque tanto recebe uma avaliação financeira quanto se integra ao valor da tarifa. Quer dizer, quanto maior o risco do concessionário, tanto mais elevada será a tarifa cobrada aos usuários.
Desse modo, a doutrina entende que há um “interesse público” na estabilidade dos contratos de concessão de serviço público, o que também se aplica aos arrendamentos portuários.
Por essa razão é que se admite o reequilíbrio econômico financeiro do contrato de concessão, porque de um modo geral a contratada assume os riscos ordinários (ou a álea ordinária) do negócio; enquanto a Administração assume os riscos extraordinários (ou a álea extraordinária).
Mas, claro, também não deixa de haver polêmica na doutrina em torno dessa “divisão de áleas”, que alguns consideram “simplista demais”.
Ainda assim, e de acordo com essa teoria, a expressão “por sua conta e risco” [incisos II, III e IV do art. 2º da Lei nº 8.987, de 1995] não significa que a contratada assumirá integralmente os riscos do contrato, mas apenas aqueles ordinários do negócio, ou seja: os riscos inerentes à atividade econômica.
Obviamente que o desejável, em qualquer relação contratual (pública ou privada), é estabelecer as regras por escrito. Então, o melhor é que o contrato de concessão separe e delimite nas suas cláusulas os riscos que cabem a cada uma das partes; contratante e contratada.
O contrato firmado entre a ANAC e a FRAPORT para a concessão do Aeroporto Internacional Salgado Filho, de Porto Alegre; hoje flagelado e inoperante por um caso fortuito que foi a enchente, está disponível na Internet. Muito provavelmente por ser um contrato público.
A versão dele, que encontrei, e que refere tratar-se de um “Texto compilado até Termo Aditivo nº 002, de 13 de maio de 2020”, talvez já tenha sido modificada por novos termos aditivos. Não se sabe. Mas ela nos serve, aqui, como um exercício de raciocínio.
E pelo menos essa versão do contrato encontrada na Internet não nos ajuda muito a elucidar se o reequilíbrio econômico-financeiro pleiteado pela FRAPORT à ANAC será, ou não concedido. Pelo contrário, lança ainda mais dúvidas sobre o pedido feito.
Uma das OBRIGAÇÕES da FRAPORT; consoante o item 3.1.56 daquele contrato, diz respeito aos SEGUROS.
E essas obrigações, são (grifamos e sublinhamos):
"3.1.5.6. contratar e manter em vigor, durante todo o prazo da Concessão, apólices de seguro, com vigência mínima de 12 (doze) meses, que garantam a continuidade e eficácia das operações realizadas no Aeroporto, que sejam suficientes para cobrir:
3.1.56.1. danos causados às obras civis, aos equipamentos e máquinas empregados na ampliação ou reforma do Aeroporto, incluindo danos decorrentes de caso fortuito ou força maior, com limite máximo de garantia no mínimo equivalente ao valor dos bens segurados;
3.1.56.2. danos causados aos bens móveis e imóveis que integram a concessão, nos termos deste Contrato, incluindo danos decorrentes de caso fortuito ou força maior, com limite máximo de garantia no mínimo equivalente ao valor dos bens segurados; "
Caso o contrato em vigor se mantenha com essas cláusulas da versão que lemos, percebe-se que será quase irrelevante, nesse caso, qualificar ou distinguir o que sejam "caso fortuito" ou "força maior", cuja distinção e conceituação nos empenhamos tanto em fazer, no início desse texto.
Isso porque o fato "enchente" se enquadra num ou noutro desses conceitos, seguramente.
A discussão que muito provavelmente irá se travar nesse caso exemplificado e em outros inúmeros casos que virão é: "o seguro foi contratado, na forma prevista no contrato?" e, tendo sido contratado, perguntar-se-á: "a apólice cobre ou não cobre os riscos da enchente?"
Quer dizer, a discussão será em muito parecida com as discussões privadas; hoje já sendo suscitadas aqui no Estado, entre, por exemplo, um condomínio residencial afetado pela cheia do Guaiba e a seguradora contratada por esse condomínio. O seguro "cobre ou não cobre" os danos da enchente no prédio e nos apartamentos dos andares baixos?
No caso da concessão, somente após ser vencida essa etapa - administrativa ou judicial - é que se terá condições de afirmar se o reequilíbrio econômico-financeiro do contrato é devido, ou não.
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