Por Roberto Schultz
Felizmente, aqui no nosso escritório não se tem ficado no mero campo da teoria e quase todas as semanas há um fato novo – e, principalmente, prático – a ser enfrentado no campo das ideias e do Direito.
Em relação aos julgamentos administrativos; ou até no momento anterior, que é o momento de elaboração dos editais, e a decorrente responsabilidade dos gestores públicos por esses atos, frequentemente se fica com a impressão de que seria necessário que a atuação de alguns desses gestores fosse mais atenta ou assumptória de uma posição mais clara e definida, firme, e não de um mero “lavar de mãos”, como ocorre em boa parte dos casos.
Nesse sentido, há teorias que protegem os dois lados da moeda: o lado do gestor público e/ou da própria Administração e o lado do administrado (ou contratado da Administração Pública).
Falemos, em primeiro lugar, da questão sob o ângulo do gestor público.
A gente sabe que o Tribunal de Contas da União acabou estabelecendo nos seus acórdãos a teoria da responsabilidade subjetiva, segundo a qual se exigiria para a aplicação de punição ao gestor a existência de um ato ilícito praticado com dolo ou culpa, do nexo causal e do dano. O Acórdão nº 249/2010, do Plenário do TCU, por exemplo, aponta isso.
Esse ângulo do gestor nos diz que a culpa e o ônus de provar a aplicação dos recursos geram quase sempre a responsabilidade desse gestor, porque as competências de cada um têm sido delegadas (em cada nível de administração) e isso atribuiria a cada um a respectiva e proporcional responsabilidade, inevitavelmente.
Também esse lado (o lado do gestor público) argumenta, com base na jurisprudência do TCU, que a delegação de competência não afasta a responsabilidade do “chefe”; porque a esse “chefe” cabe fiscalizar os atos dos subordinados (responsabilização por culpa in eligendo e/ou culpa in vigilando). Do mesmo lado, é alegado ainda que “Não se pode, tampouco, pretender que todas as informações de subalternos sejam checadas por seus superiores, sob o risco de inviabilizar-se a administração. Aliás, se assim o fosse, não seriam necessários os servidores subalternos. Bastariam os chefes ..." (Acórdão TCU – Plenário - 65/1997).
A Lei 13.655/18 (abril de 2018), que acrescentou os artigos 20 a 30 à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), no seu art. 281 trouxe a possibilidade de responsabilização pessoal do agente público apenas pelos atos praticados com dolo ou com erro grosseiro.
Em 2019, e pretendendo a regulamentação dessa Lei e da questão, foi editado o Decreto 9.830/19.
O art. 123 do mesmo Decreto estabelece que erro grosseiro é "aquele manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia".
Também o art. 12, § 2º do mesmo Decreto dispõe que a prova desse erro grosseiro deve ser cabal e não meramente “presumida”.
Isso é complementado pelo §7º do mesmo art. 12, o qual estabelece que no exercício do poder hierárquico, só responderá por culpa in vigilando aquele cuja omissão caracterizar erro grosseiro ou dolo.
Perfeito. Não fosse isso e a responsabilidade continuaria recaindo sobre o “chefe” (assim compreendido o superior hierárquico do servidor ao qual a competência para o ato tenha sido delegada), mesmo que ele não pudesse fiscalizar a tudo, diretamente, por absoluta impossibilidade de abraçar a todas as atividades.
O Decreto de 2019 também tratou da responsabilidade do gestor público por condutas baseadas em pareceres técnicos (advogados, engenheiros, contadores, profissionais de Tecnologia da Informação e da Comunicação), já que dificilmente um superior hierárquico terá competência profissional suficiente para abarcar áreas tão diferentes do conhecimento humano.
Porém, não pode o gestor – também nesses casos – “lavar as mãos” e atribuir a responsabilidade exclusivamente ao expert que emitiu o respectivo parecer, pois o erro grosseiro, ou ocorrido pela possibilidade de conluio entre servidores públicos e entes privados (empresas participantes de uma licitação, por exemplo), deve ser devidamente analisado e, se for o caso, detectado.
A partir daí, e em segundo lugar, cabe discutirmos também a questão sob o ângulo do particular e, mais especialmente, do licitante, que é a nossa área de interesse na discussão da atuação da Administração Pública.
E esse destaque aqui dado decorre do recente Acórdão do TCU de nº 368 deste ano de 2022, que analisou o fato de que determinada concorrência pública foi homologada com diversas irregularidades.
Naquele Acórdão foi julgado que “A alegação de que o ato homologatório tem natureza meramente formal é descabida. De acordo com a jurisprudência do Tribunal, a homologação de um procedimento licitatório não é ato meramente formal, em que a autoridade competente apõe sua assinatura e toma ciência do resultado do certame. Trata-se, na verdade, de ato por meio do qual a autoridade administrativa exerce o controle sobre a legalidade do procedimento. Assim, caso haja alguma irregularidade no transcorrer da licitação, cumpre à autoridade competente rejeitar a homologação” (Acórdão 690/2008-Primeira Câmara, rel. Min. Marcos Bemquerer, grifamos)”.
Além de mencionar o Acórdão 690/2008, no Acórdão 368/2022 são mencionados expressamente os Acórdãos 3294/2014 e 9117/2018, segundo os quais (grifamos)
“O ato de homologar uma licitação não é mera formalidade, funcionando como revisão da regularidade de todo procedimento. A homologação de procedimento viciado implica a responsabilização da autoridade homologadora” (Acórdão 3294/2014-Plenário, rel. Min. Benjamin Zymler);
“A homologação de processo de licitação não se trata de mera ratificação de atos anteriores, mas de oportunidade de averiguar a sua regularidade antes que surtam efeitos concretos, independentemente do período de permanência da autoridade homologadora no cargo ou na função” (Acórdão 9117/2018-Segunda Câmara, rel. Min Ana Arraes).
Ou seja, ninguém está "apenas ratificando" o parecer de determinada área ou do subordinado hierárquico. Está, isso sim, assumindo solidariamente essa responsabilidade.
Resumindo a conversa, e não sendo aceitas as alegações dos servidores no sentido de que “não possuiam conhecimento técnico e jurídico” e aos quais não foi dado, pelo TCU, se escusarem das obrigações inerentes às suas atribuições, assim como também não foi dado ao parecerista jurídico se escusar por conta de parecer consolidando uma tese que foi taxada de “inaceitável”.
Tais servidores foram MULTADOS (em espécie) pelo TCU.
A faca, portanto, é de dois gumes.
Porém, do “lado de cá do balcão” e pelo ângulo do licitante e/ou contratado da Administração, de certa forma conforta saber que existe a possibilidade de punição do gestor em situações assim.
Como se vê no dia a dia das licitações, alguns gestores comodamente optam por ignorar pareceres técnicos (em questões de alta tecnologia, por exemplo) e até jurídicos, ofertados pelos licitantes, e que demonstram que determinada licitante foi classificada injustamente como vencedora, porque deixou de atender ao edital e mereceria, isso sim, era a desclassificação. E não vencer o certame, como muito frequentemente acontece.
Considera-se que o gestor público, advertido pelos demais licitantes, caso não conheça a matéria (envolvendo tecnologia, por exemplo), tem no mínimo o dever de consultar à sua área de tecnologia; ao seu departamento jurídico; ao seu setor fiscal e contábil; ao seu setor de Engenharia, etc., conforme seja a matéria envolvida.
Porque uma vez tenha sido formalmente advertido pelo licitante inconformado; seja por intermédio de um recurso administrativo interposto ou pelo recebimento de uma correspondência específica para esse fim, não poderá futuramente, esse gestor, alegar que “desconhecia” o descumprimento de um edital por aquele outro licitante que ele, o gestor, classificou indevidamente em primeiro lugar na licitação.
Ignorar esses alertas formais será considerado contratar mal e contra o interesse público, por desídia ou por má fé. E, obviamente, com prejuízos à Administração.
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