top of page
Buscar

A "DENÚNCIA ANÔNIMA" NOS CRIMES LICITATÓRIOS.


Por Roberto Schultz.


Atualmente atuando na defesa de empresa cliente que teve seu nome envolvido em escândalos de corrupção (ou crime de concussão), percebemos que o "instituto da denúncia anônima" inexiste na doutrina e na jurisprudência, mas segue existindo na prática.


No caso específico dessa cliente, não ocorreu - até onde se saiba - a denúncia anônima, assim, corporificada num telefonema ou num e-mail. O que num outro cliente nosso, e no passado, veio na forma de um e-mail, ainda que não identificado.


Na cliente atual, a "denúncia anônima" veio numa ainda mais absurda menção; feita pela polícia civil que investigava os crimes, dentro do inquérito. Segundo a polícia, havia "várias conversas de whatsapp que foram apagadas" (grifamos), no telefone do sócio da minha cliente, com o agente público investigado (que foi preso e segue preso há vários meses).


Detalhe: essas supostas "conversas que foram apagadas" nunca existiram; primeiro porque o meu cliente não mantinha qualquer relação interpessoal com o tal agente público (que, aliás, repelia qualquer contato com o meu cliente porque "preferia" contatar com outras pessoas "mais favoráveis" a ele...) e, portanto, tais conversas nunca ocorreram no seu telefone e nem em qualquer outro aparelho. Não ocorreu escuta; não ocorreu gravação; não ocorreu print de tela e sequer perícia. Aliás, nós oferecemos o telefone para perícia, mas ela não foi feita.


Tudo isso eu conto para demonstrar que essa menção a "várias conversas de whatsapp que foram apagadas" provavelmente são fruto de uma denúncia anônima.


E aí eu lembro de um trecho do célebre escritor tcheco Kafka, no já clássico romance "O Processo":


“Certamente alguém havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem que tivesse feito mal algum”. (FRANZ KAFKA, “O Processo”, Primeiro Capítulo)

Naquele romance, mundialmente citado em processos judiciais por criticar abertamente os meandros dos tribunais; com a sua burocracia e a dificuldade de acesso dos cidadãos aos seus procedimentos muitas vezes tortuosos, o personagem Josef K. acorda num determinado dia com a visita de um oficial da lei que lhe apresenta uma intimação judicial.

Inicia-se, assim, uma peregrinação surrealista de Josef K. por um tribunal que lhe remete, no decorrer do livro e do enredo, a caminhos que vão se tornando cada vez mais absurdos. O mais absurdo, no entanto, é que Josef K. desconhece, por todo esse tempo, a RAZÃO pela qual está sendo condenado. O objetivo do tal “tribunal”, segundo o descreveu Kafka, é “excluir o mais possível a defesa, tudo deve recair sobre o próprio acusado” e, nele, “Na verdade o próprio acusado não tem acesso aos documentos do tribunal e é muito difícil deduzir dos inquéritos os autos que os fundamentam, sobretudo para o acusado, que está confuso e às voltas com todas as preocupações possíveis que o dispersam”. É, pois, um “juízo arbitrário e de exceção”. E às vezes ele é instaurado a partir de uma DENÚNCIA ANÔNIMA, que em tempos de Internet poderá estar consubstanciada num mail enviado ao Chefe da Repartição ou Superior imediato e/ou outras autoridades por algum covarde. E uma denúncia anônima não pode servir para a instauração de um caro e dispendioso Processo Administrativo Disciplinar (PAD) e, muito menos, para a instauração de um inquérito policial que poderá redundar numa ação penal. Os princípios que norteiam a atividade pública da Administração (regulamentada por Lei Federal, mas aplicável à Administração em qualquer âmbito) são os princípios da MORALIDADE E DO INTERESSE PÚBLICO. Tais princípios, que na Lei são as bases da Administração Pública Federal (art. 2º, caput, Lei Federal 9.784/99), também devem, claro, estar cristalizados na conduta de quaisquer agentes públicos. O princípio cabível para denunciar “situações” assim está na Lei. A Lei nº. 8.112/90 (em relação aos servidores) diz que "Art. 144. As denúncias sobre irregularidades serão objeto de apuração, desde que contenham a identificação e o endereço do denunciante e sejam formuladas por escrito, confirmada a autenticidade" (grifamos). Por força do já conhecidíssimo princípio da legalidade (art. 37, caput, da Constituição Federal), a Administração Pública deverá examinar o atendimento dos critérios de admissibilidade das denúncias: peça denunciatória em forma escrita, com a identificação e o endereço do denunciante, além de devidamente confirmada em sua autenticidade. Como se disse, isso decorre primordialmente da Constituição Federal.


E a Administração Pública não pode fazer senão aquilo que a lei autoriza. Toda a sua atividade deve pautar-se pelo respeito e plena obediência às normas legais, que devem ser aplicadas sem espaço para tolerância ou tergiversação pelo administrador. Não pode o agente público agir fora do império da lei. Agir movido por “motivações estomacais”, e por uma denúncia apócrifa, é esquecer-se da GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL (art. 5o., LIV, Constituição Federal de 1988), cujo reflexo é de que os feitos administrativos forçosamente obedecerão, desde o seu início, aos procedimentos previstos em lei, em face da indisponibilidade nos feitos administrativos das normas de natureza procedimental. O que obviamente deverá se estender para além da esfera judicial, quando "cair" no âmbito judicial. Os procedimentos estabelecidos em lei não podem ser objeto de renúncia pelos órgãos julgadores. Impede-se, consequentemente, a instauração de um feito disciplinar, ou mesmo punitivo de uma contratada, quando venha fundamentado em denúncia apócrifa e que não atenda aos requisitos legais.


Fazer essa denúncia meramente "fofoqueira" transformar-se num PROCESSO JUDICIAL, então, é ainda mais arbitrário.




17 visualizações0 comentário
bottom of page