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RELAÇÕES "INCESTUOSAS" ENTRE EMPRESAS LICITANTES E IMPEDIDAS: É LEGAL, MAS NÃO É REALISTA.

Como sempre faço aqui, não entro no mérito do caso judicial (com todos os seus fatos e documentos), em si, mas na SITUAÇÃO JURÍDICA noticiada na matéria jornalística abaixo, de O GLOBO (clique na imagem para ler a matéria).


Nesse caso abaixo, a celeuma se deu numa licitação no Município do Rio de Janeiro, para a implantação de bilhetagem digital em ônibus. Uma das empresas; aparentemente impedida pelo edital lançado pelo próprio Município, impetrou ação judicial na qual obteve uma liminar garantindo a sua participação na licitação.


Isso porque empresas que operam sistemas de transporte na Região Metropolitana do Rio e suas subsidiárias estão proibidas, pelo edital, de concorrer. Os envelopes serão abertos em 07 de dezembro.


A decisão é da juíza da 10ª Vara de Fazenda Pública do Rio.


E aqui o motivo de eu escrever que a decisão é legal mas não é justa.


A própria juíza, na sua decisão, diz que (grifamos e sublinhamos)


"não se ignora que membros do Conselho de Administração da autora (Riocard) são indicados pela Fetranspor, empresa que figura como ré em inúmeras demandas juntos às Varas de Fazenda Pública deste E. Tribunal de Justiça. Igualmente tem-se ciência das incontáveis fraudes realizadas em nosso País em processos licitatórios, muitas delas relacionadas a parentesco societário de licitantes, a empresas participantes de mesmo grupo econômico, entre outros casos afins, e que inclusive são objetos de demandas judiciais para anulação do certame e responsabilização dos fraudadores".

Mesmo "não ignorando" essas circunstâncias da própria realidade, a Juíza ainda assim apegou-se ao edital e concedeu a liminar, mencionando que


"o edital preferiu seguir a Lei nº 8.666/93 (lei que regulamenta as licitações brasileiras), que em seu art. 9º elenca as hipóteses de vedação de participação em licitação, e nenhuma destas engloba a hipótese da cláusula 11.3.1 (a vedação de participação) objeto da demanda".

Ou seja, disse que o edital "não veda expressamente" nenhuma das hipóteses e, por isso, não poderia impedir a participação.


A decisão nos dá a entender que quando a Juíza afirma que "o edital preferiu seguir a Lei nº 8.666/93" (grifei), ela provavelmente está querendo dizer que se o Município tivesse preferido fazer um edital regido expressamente por outra lei (qual? a das Estatais, a Nova Lei de Licitações?), a decisão teria sido diferente.


Não sei se esse "preferiu" posto lá na decisão realmente teve esse sentido.


Fato é que já estamos carecas de ler que "o edital é a lei interna numa licitação", pois há anos repetem essa frase surrada nos recursos administrativos, já não aguentamos mais ler isso.


Porém; senhora doutora Juíza do Rio de Janeiro, quando se fala em "seguir o edital" (ou "vinculação ao edital", outra repetição incessante) não se pode suprimir a LEI (seja qual for a lei de regência), preferindo o edital à Legislação!!!


A legalidade está em se vincular à regra do edital, sim, mas a legalidade também está em entender que a LEGISLAÇÃO É HIERARQUICAMENTE SUPERIOR AO EDITAL.


Certo, quem não concorda com o edital conta com a via da impugnação administrativa a ele. Tudo bem. E sabemos que a maioria dos licitantes quer impugnar depois, o que deixou de impugnar no momento certo e tempestivo. Pode até existir um pouco de inércia na falta de impugnação ao edital.


Ocorre que determinadas situações só aparecem na prática: quem lida com licitações sabe que a cada dia surge uma novidade interpretativa de um fato, diante da Legislação. O que de certa forma é bom, pois mesmo o tema "licitações" sendo antigo, sempre é um desafio desenvolver-se uma nova tese. Assim como também sabemos que a interpretação do edital só surge enquanto corre o barquinho da licitação, não antes disso.


Porém, se o edital é omisso ou mal redigido, não dá para fechar-se os olhos às disposições da Legislação, mesmo que o edital não tenha sido impugnado. O princípio maior manda que a licitação seja conduzida de acordo com a lei.


Estou sabendo que alguns consideram não seguir fielmente o edital, mas os fatos, como sendo uma forma de Direito Alternativo (alô Des. Ruy Portanova, do Tribunal de Justiça do Estado do RS, um dos precursores no Brasil!). E sou do tempo em que falar-se em Direito Alternativo significava (para quem ouvia) uma confissão do tipo: "sou comunista" ou "sou de esquerda", como burramente é repetido pelo atual governo federal, na maioria das vezes sem qualquer fundamento.


Seja como for, parece um absurdo saber que a situação de fato posta diante do julgador (judicial ou administrativo) está cheia de "pontas mal amarradas" (e na decisão da matéria abaixo, a Juíza no RJ reconhece isso) e mesmo assim ficarmos encerrados no estreito espaço daquilo que "o edital previu expressamente". Especialmente quando há editais mal feitos, esculhambados, e que são redigidos por cópia de outros.


Sabemos de sobra que a Administração Pública deve obediência ao princípio da legalidade. Ou seja, toda a sua atuação deve ter por base as determinações contidas na lei. Nesse ponto, precisamos considerar que a lei é "coronel" e o edital é "cabo". Ou seja, um subordinado hierarquicamente.


Também porque a discricionariedade da Administração encontra limites, além da legalidade, também no princípio da razoabilidade. É preciso ser razoável, pois.


Então, se há o conhecimento expresso; e reconhecido, pelo juiz da causa, de que há uma relação incestuosa entre empresas que participam da licitação e outras empresas impedidas de participar, ou que, por alguma razão, também interferem indiretamente na competição que se destina a um fim público (muito maior do que o edital), não há qualquer razão para ignorar-se isso sendo meramente legalista (ou positivista) e aplicar-se incondicionalmente o edital.


A Juíza lá do RJ deve certamente ter ouvido falar no Princípio da Realidade.


Segundo a autora RAQUEL URBANO (Curso de Direito Administrativo, Podium, 2008, p. 95): pelo princípio, nenhuma norma administrativa pode ignorar o mundo dos fatos:


“Se há discordância entre determinada presunção e o que restou comprovado na prática administrativa, deve-se atentar para a veracidade das circunstâncias empíricas”.

História interessante (e divertida) é contada pelo autor JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA; ele próprio procurador do Estado e advogado no Rio de Janeiro, no seu artigo denominado O princípio da realidade no Direito Administrativo:


"Conta-se que ainda hoje há ato administrativo, da época da Guanabara, que regula o horário de funcionamento das praias cariocas. E, ao que parece, ainda está em vigor lei municipal carioca que obriga todos os bares e restaurantes a fornecer gratuitamente a todos os que se sentarem um pedaço de pão e um copo d’água. De modo que, ainda hoje, quando a praia de Ipanema fechar, talvez seja uma boa irmos comer de graça um pão de pato no restaurante do hotel Fasano".

Similar a essa, uma outra história é contada pelo escritor uruguaio EDUARDO GALEANO, no seu maravilhoso O Livro dos Abraços.


Segundo ele, havia um quartel de um dos países da América do Sul (não é o Brasil), onde havia uma sentinela permanente montando guarda ao lado de um banco branco, no pátio do quartel.


O novo comandante, preocupado com o desperdício de haver um soldado montando guarda permanentemente ao lado de um banco, procurou a origem daquela norma. E foi aí que descobriu que; alguns anos antes, o antigo comandante mandou pintar o banco e baixou portaria mandando colocar lá uma sentinela, a fim de que esperassem a tinta secar e não permitisse que ninguém se sentasse ali. Como a portaria não foi revogada, a regra seguiu sendo obedecida pelos anos seguintes, sem questionar a REALIDADE.


Ignorar uma situação REAL, e de fato, fazendo impor rigidamente a regra de um edital de licitação (ou da ausência de vedação pelo próprio edital), é meio isso.


Permitir-se a participação, numa licitação, de empresas impedidas, cujos sócios sejam os mesmos ou quase os mesmos das impedidas, ou permitir-se tal participação por interpostas pessoas ou empresas, porque o edital "não veda expressamente" isso (ainda que a lei vede), é manter-se em vigor a portaria que mandou um soldado guarnecer permanentemente um banco recém-pintado.


Obedece rigorosamente à regra, mas desobedece fragorosamente à realidade.


E causa injustiça.







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